Nesta
postagem o Diário de Um Advogado Trabalhista oferta aos amigos leitores mais
uma proposta de entendimento acerca das últimas manifestações espontâneas por
parte dos nossos jovens.
Como
tudo que acontece dentro de um legítimo ambiente democrático, o destino deste
novo processo de participação popular ainda não é totalmente conhecido,
desafiando por certo as mais variadas idiossincrasias.
Burocratas
e fisiologistas de sempre, não estão acostumados à característica fluidez
destes movimentos. Logo, surpresa e terror passam a ser conceitos que
indevidamente se fundem.
Neste estado de ideias que espocam
nas mais variadas direções, peço licença aos amigos leitores para reproduzir texto
de um Autor já conhecido aqui neste espaço, e cujas visões dos fatos – neste momento
– são as que este Blogueiro tem encontrado maior convergência. Cerro fileiras.
Vale
a pena ler, concordar, discordar, mas sem deixar de refletir. Assim avançamos,
caminhamos e a “fila anda”. Por que, não?
Ao
final desta semana, o Diário retomará sua pauta particular com assuntos
específicos ao Direito do Trabalho e relações trabalhistas.
Vencendo o terrorismo do medo: a hora da política
Jorge Luiz Souto Maior(*)
Quando se anunciava que um Partido dos
Trabalhadores poderia chegar ao poder, difundiu-se a figura do medo. Medo da
reforma agrária, medo da reforma urbana, medo do “comunismo”, enfim. Para tanto
chegou-se até mesmo, em uma ocasião, a expor a vida privada do candidato Lula,
para prejudicá-lo perante à opinião pública e, em outra, a colocar uma camiseta
do PT em um seqüestrador, que fora preso dias antes da eleição, difundindo-se a
imagem.
Aliás, cabe lembrar que foi essa tática do medo do
“comunismo” que nos conduziu à ditadura de Vargas, de 37 a 45, e a 21 anos de
ditadura militar.
Pois bem, o que se percebe agora é a utilização da
mesma tática, de forma invertida. Vê-se a difusão entre a esquerda da ideia de
um medo quanto à mobilização que está nas ruas. “É coisa da direita”, se diz.
Diz-se, também, que o movimento foi invadido por “mauricinhos” e que a
mobilização está sendo conduzida por setores poderosos da mídia, para
desestabilizar o governo Dilma ou até para apoiar um golpe militar. E o que
mais se escuta de pessoas bastante esclarecidas é: “estou com medo”.
Tenta-se, com isso, tirar as pessoas das ruas,
sobretudo as que iniciaram o movimento e que possuem uma orientação política de
esquerda, tomando-as, inclusive, como responsáveis pelo eventual avanço
reacionário da direita no cenário das ruas.
Do ponto de vista da intelectualidade, quanto às
pessoas que estão nas ruas, embora constitua uma coletividade cada vez mais
complexa, tenta-se difundir a ideia de que se trata de um movimento uníssono,
composto de jovens de classe média, despolitizados, que estão servindo de massa
de manobra aos interesses de uma direita golpista, ou que professam, por
convicção, valores reacionários de direita.
Essa simplificação não corresponde à realidade
verificada nas ruas, até porque o movimento está ganhando as periferias da
cidade, com pautas mais concretas e emergenciais.
No que se refere aos movimentos mais centrais,
digamos assim, e considerando, sobretudo, aqueles que se iniciaram,
sucessivamente, no Largo da Batata, na Praça da Sé e na av. Paulista, o que se
percebeu, até a última quinta-feira, foi a exposição de um número muito grande
de reivindicações. Mas, ainda que se pudesse verificar, a presença de muitas
pessoas intolerantes e, notoriamente, querendo insuflar uma pauta de oposição
direta ao governo, não há como dizer que o movimento, na sua maioria, estivesse
ligado a esse propósito. Havia um pouco de tudo e é impossível quantificar, com
precisão, quantas pessoas tinham tal ou qual orientação política. Abstraindo as
diferenças, o que se via, no geral, era um desejo de expressar um grito de
insatisfação contra 500 anos de desmandos, o que se verberava, muitas vezes,
sem organização ou coerência. Vi algumas pessoas que gritavam frases que eram
politicamente contrárias entre si.
Mas, como dito por Boechat, seria demais exigir
dessas pessoas que tivessem propostas prontas e acabadas para resolver os
problemas do país, pois, no geral, saíram de suas casas, abruptamente,
motivadas por um sentimento de solidariedade com relação aos jovens que lutavam
por uma pauta específica, a redução da tarifa, e que foram vítimas de forte
violência policial.
O aumento das reivindicações acabou sendo
proporcional ao aumento da sensação de força que se atingiu com o crescimento
das fileiras, sendo que a ampliação da pauta foi ditada pelo próprio MPL. Foi
quando se disse: “não é só por R$0,20”, “queremos saúde e educação públicas de
qualidade”.
Claro que a partir de então se estabeleceu uma luta
pelo domínio ideológico da massa nas ruas. Mas isso, ao contrário do que se faz
supor, foi percebido pelas pessoas que foram para as ruas. A mudança de
perspectiva da grande mídia também foi percebida. Em certo modo, da percepção
da utilização de sua presença na rua para dividendos políticos de partidos
revelados e não revelados foi que surgiu um dos grandes lemas da experiência
vivida, qual seja, o grito “sem partido”, que acabou se constituindo,
igualmente, um dos grandes problemas dos atos.
Mas, não me parece, observando “in locco” as
manifestações, que esse grito representasse, naquele contexto e naquele
instante, uma censura ditatorial a qualquer partido especificamente ou a
negação da importância de sua existência, embora, claro, daí decorra o risco da
fala poder servir à completa despolitização e, consequentemente, à formação de
regimes ditatoriais, que, historicamente, cooptaram as massas com o discurso do
nacionalismo e, pior ainda, com propósitos xenófobos. De todo modo, vale
lembrar que o grosso dos manifestantes era de jovens e a sensação que se
passava era a de que não queriam servir a finalidades políticas ainda não muito
bem compreendidas por eles. Penso que havia um desejo enorme de, simplesmente,
exercer uma liberdade de expressão, em prol de mudanças, embora houvesse, por
certo, muitos propósitos reacionários se consideramos a construção histórica
dos últimos anos. Mas havia, também, e em grande número, jovens com extrema
consciência política de esquerda, coisa que, ademais, há uns 10 (dez) anos era
impensável.
Talvez, também, quisessem alcançar alguma unidade,
fora das disputas partidárias, para possibilitar que o movimento crescesse
ainda mais. Lembre-se que o MPL, que convocou as manifestações, foi constituído
como uma entidade apartidária (embora não anti-partidos) e até então não havia
se expressado, claramente, como um movimento de esquerda.
Cumpre entender que não estou defendendo isso. Não
tenho dúvida da relevância dos partidos para a vida política e democrática de
um país. Tento apenas entender um fato que presenciei, o que está, portanto,
alheio ao meu desejo.
Relevante, ainda, extrair alguma conclusão a
respeito. Ao contrário de criar uma aversão ao movimento, compete aos partidos
escutarem a mensagem que estavam, enfim, sendo transmitidas nas ruas. Há de se
destacar, por certo, o problema de que muitas daquelas pessoas (não todas,
evidentemente), que preconizavam democracia, não foram suficientemente
democráticas para ouvir os partidos e mesmo não foram capazes de reconhecer que
os partidos socialistas, que caminhavam ao seu lado, apoiando as causas, sempre
estiveram, historicamente, presentes nas lutas por mudanças na sociedade. Mas,
também não se pode deixar de identificar que a tentativa abrupta e sem qualquer
estratégia ou explicação lógica do Partido dos Trabalhadores, do governo, de
entrar em um movimento que trazia pautas de pressão sobre o governo, foi um
grande erro e mais ainda foi equivocado os partidos socialistas se unirem ao
PT, naquele momento, por conta de uma causa comum, a da defesa da participação
dos partidos no ato, portando suas bandeiras. Isso gerou uma espécie de irritação
generalizada, que provocou nos mais exaltados, uns ligados a movimentos
ultradireitistas, uma reação violenta (que não se justifica, de modo algum,
obviamente), provocando um marco trágico na manifestação, que foi a expulsão,
pela força, de todas as pessoas que portavam bandeiras de partidos e daquelas
que, como eu, caminhavam ao seu lado.
Mas, não é irrelevante notar que o grupo dos
anarquistas, que não era pequeno, continuou na avenida e sem ser hostilizado
manteve-se gritando palavras de ordem, denunciado o caráter elitista, racista e
violento (contra os pobres) de nossa sociedade.
O problema maior foi o de que mesmo antes do
crescimento das mobilizações houve uma partidarização das análises, que, por
mais paradoxal que possa parecer, retirou o caráter mais politizado das
reivindicações, que, no geral, questionavam, naquele instante mais diretamente,
o modelo de sociedade em que vivemos, o capitalismo. O mundo verifica um abalo
geral do capitalismo e, de modo geral, os movimentos espontâneos de estudantes
pelo mundo afora tratam da discussão do capitalismo, senão expressamente
direcionando-se na direção do socialismo – embora essa pauta também se ponha –,
ao menos na perspectiva da contraposição às concepções liberais ou, mais
propriamente, neoliberais, preconizando maior intervenção do Estado (Social) na
economia, por meio da promoção dos direitos sociais, que têm sido
negligenciados desde o final do século passado.
Mesmo os tais “mauricinhos” – deixando claro que
não gosto da expressão –, que depois se integraram ao movimento, foram para as
ruas defender saúde pública, educação pública e transporte gratuito (ao menos
mais barato). Até mesmo a discussão em torno da corrupção, embora servisse ao
enfrentamento eleitoral contra o governo, se bem compreendida, não está
desvinculada do debate acerca do modelo de sociedade, pois para a execução das
atividades públicas é preciso dinheiro e o furto do dinheiro público é, sem a
menor dúvida, o maior crime que se pode cometer contra o Estado Social.
Haver-se-ia, pois, de acoplar a essa reivindicação uma discussão mais concreta,
e politizada, da necessidade do Estado em coibir a sonegação, sobretudo diante
de uma realidade em que é cada vez mais comum a prática de transformar
empregados em “PJs”, para não pagar contribuições previdenciárias (sociais) e
impostos – e vários dos estudantes e profissionais nas ruas são vítimas dessa
supressão reiterada de direitos –, demonstrando o quanto isso constitui
igual crime contra o Estado Social.
Na mesma linha, dever-se-ia aproveitar o momento
para desenvolver senso crítico à transmissão vertical e horizontal da produção
das grandes empresas para pequenas empresas, pois isso dificulta a
responsabilização daquelas com relação às obrigações sociais, uma discussão que
atrai a compreensão em torno da necessidade do fim da terceirização, que
implica, além disso, segregação, invisibilidade, precarização e alto custo
social com benefícios previdenciários, decorrentes da insegurança no trabalho.
Seria oportuno, ainda, trazer à baila a discussão
em torno da tributação das grandes fortunas, buscando um sistema tributário
mais justo, pois no geral, no Brasil, quem ganha menos paga mais.
Aliás, na linha da mobilização contra a PEC 37,
poder-se-ia realçar a relevância da atuação do Ministério Público Federal para
coibir os crimes contra a ordem econômica, advindo especialmente da prática de
falências fraudulentas, seguidas da “limpeza” dos bens do empreendimento,
deixando em situação de penúria os trabalhadores, da constituição de empresas com
capital estrangeiro, que se instauram no Brasil, exploram o trabalho dos
empregados e depois somem sem deixar vestígios, prejudicando as empresas
nacionais, e da constituição de empresas descapitalizadas ou cujo capital está
em paraísos fiscais, atuando no mercado sem conferir garantias reais para
efetivação das obrigações sociais, também em detrimento da concorrência. Da
mesma forma, valeria ressaltar a importância da fiscalização do Ministério
Público do Trabalho e do próprio Ministério do Trabalho e Emprego, para
verificação da regularidade trabalhista, buscando, de uma vez, a extinção do
trabalho em condições análogas a de escravo, a preservação da saúde no ambiente
de trabalho e a efetiva coerção ao descumprimento reiterado da legislação
trabalhista, também utilizado como mecanismo de obtenção de vantagem econômica
frente à concorrência.
Lembre-se, ainda, que, na origem, esse era um
movimento de jovens e os jovens estão motivados por uma preocupação estrutural,
na medida em que pelo mundo afora – e eles têm notícia disso – percebe-se a
estagnação de um modelo de sociedade que não os acolhe, principalmente aqueles
que se preparam intelectualmente. Para esses jovens da classe média a
frustração é muito grande. Assumindo desde muito cedo a lógica capitalista,
vêem-se colocados em boas escolas onde “estudar para passar no vestibular”,
superando a concorrência, é palavra de ordem. Nestas instituições o ensino é
forte e consistente. Aprendem muito e sobretudo estão muito bem informados,
dadas as facilidades da internet. Quando entram na Faculdade, na enorme maioria
dos cursos, chocam-se com o despreparo dos professores e a desorganização. Na
esfera pública isso se dá por conta do descuido de décadas – desde a era
militar – com o ensino público superior (nas esferas federais e estaduais) e no
setor privado por conta da consideração das entidades de se constituírem uma
empresa para dar lucro. Vários anos de rigor acadêmico e muita disciplina de
vida ficam sem sentido e muitos, muitos mesmo, descambam para uma libertação
quase desesperada, com envolvimento com drogas e em baladas sem fim. E a
frustração aumenta ainda mais quando veem os seus amigos mais velhos, que já
passaram por isso, não alcançarem bons empregos ou mesmo emprego algum.
Claro que, no Brasil, pode-se ver o acréscimo desse
problema com o incremento de algumas políticas de atração de jovens das classes
economicamente mais baixas para as universidades e mesmo pela adoção, ainda que
em pequena escala, das cotas sociais e raciais. Mas, primeiro a dificuldade da
inserção dos jovens ao mercado de trabalho transcende essas iniciativas,
constituindo um problema mundial; segundo, não há uma revolta contra essa
inclusão, até porque está em conformidade com a própria pauta da defesa da
melhoria dos serviços públicos; terceiro, essa inclusão está muito aquém do
necessário e sabe-se bem é inevitável; e, quarto, o problema da frustração pelo
desemprego atinge, principalmente, os que foram incluídos nas universidades por
tais políticas, que não abalaram, vale lembrar, a lógica privada de ensino.
Fato é que de repente, tendo conhecimento do que já
estava acontecendo no mundo, com reações estudantis contra um sistema que não
lhes confere oportunidades e que lhes engana, mas também por conta de um
sentimento de solidariedade, que é o que também inspira os integrantes do MPL,
esses jovens se viram chamados para uma reação nas ruas – não falo aqui da
grande parcela de jovens politizada e engajada com as causas sociais de forma
convicta que já estava nas ruas e que também se integrava ao movimento. Para os
jovens referidos, os denominados jovens despolitizados da classe média, foi a
oportunidade de soltarem um grito de insatisfação contra tudo que entendiam os
estava reprimindo e negando-lhes um futuro e de experimentarem a vida política,
exprimindo, também, certa solidariedade.
Esses jovens foram impelidos para as ruas,
encontrando-se com a vida política na sua essência, e em vez de terem sido
acolhidos pela intelectualidade política, com aproveitamento de sua energia renovadora,
foram acusados de “mauricinhos”, direitistas, massa de manobra de um golpe em
gestação por conta do medo do que sua energia pudesse provocar em termos da
instabilidade do governo. Foram chamados para as ruas, por um movimento com
discurso de esquerda, cerraram fileiras com as causas sociais, depois foram
convidados a se calar!!! Esse, me parece, foi um grande erro de percepção e de
estratégia, até porque carregado de um conceito preconcebido. Não considero que
seja correto afirmar, ademais, que a classe média seja, em si, uma classe
homogênea, com inspiração necessariamente conservadora ou alheia aos problemas
sociais. A maioria dos militantes e teóricos que se dizem de esquerda que
conheço pertencem à classe média e, no geral, não me relaciono com pessoas da
classe média que sejam reacionárias e retrógradas.
Vale compreender que o que estava pautado até então
não erauma discussão “difusa”, como se disseminou. A disseminação dessa ideia
se deu em virtude da partidarização do debate, atendendo, inclusive, a um
interesse recíproco de conservadorismo. Ambas, direita e governo pautaram a
discussão numa perspectiva conservadora, ou seja, sem permitir um debate
concreto acerca do modelo de sociedade capitalista, embora a pauta de
reivindicações trouxesse, intrinsecamente, tal discussão. O que se tinha era –
e ainda é – um enfrentamento generalizado do modelo de sociedade, com o
conseqüente abalo direto da concepção neoliberal. Mas, o terrorismo do medo, do
golpe de direita e da revolução comunista, instaurado, portanto, por todos os
lados, impediu essa discussão, e tudo virou um embate por dividendos políticos
deste ou daquele partido.
Claro que veículos de difusão nas redes sociais
chamaram muitos desses jovens para as ruas por conta de preocupações pretensamente
neutras, mas que serviriam para desestabilizar o governo, tendo sido esse
chamado acompanhado, estrategicamente, pela alteração do comportamento da
grande mídia sobre o assunto: os “baderneiros” passaram a ser denominados de
“manifestantes”. É interessante, aliás, ver como a cobertura da mídia que antes
sempre mostrava os efeitos trágicos no trânsito e o “desespero” das pessoas que
estavam sendo impedidas de chegar em casa por causa das manifestações, o que é
uma tradição em todas as greves de trabalhadores, mudou de uma hora para outra
para uma fala em torno da democracia, da liberdade de expressão, divulgando
imagens de pessoas felizes e contentes com as “passeatas”, inclusive de quem
estava sendo atingido por elas.
É evidente, portanto, que o movimento cresceu por
uma tentativa de guinada a temas desprovidos de conteúdo, incentivados pela
grande mídia, para desarticular o discurso de esquerda e, por tabela, para
abalar a força do governo federal, retirando, inclusive, o foco das
administrações municipal e estadual. Mas, as coisas não estiveram sob seu
completo domínio – tanto que o movimento nas ruas continuou hostil às emissoras
de TV – e a intenção não era, claramente, de golpe, mas de dividendo eleitoral,
tanto que se tentou manter sob controle as manifestações, procurando-se deixar
claro a todo instante que elas deveriam ser pacíficas. O grito “sem violência”
servia tanto contra a ação da polícia quanto contra a ação dos manifestantes,
sendo acompanhado do “sem vandalismo”. O fato é que, parece-me, esses jovens
possuem um conhecimento que impede que sejam tratados como mera massa de
manobra e possuem uma consciência social bem maior do que se imagina.
Todavia, com medo do que estava acontecendo, a
reação dos partidos de esquerda passou a ser voltada, exclusivamente à
preservação da estabilidade do governo, com atração, inclusive, dos partidos de
esquerda de oposição ao governo. Interessante verificar que as explicações para
o momento e a forma de conduzi-lo, advindas da esquerda e da direita, caminharam-se
para o centro, como já ocorrera, ademais, por ocasião do anúncio da redução da
tarifa, feito de forma conjunta pelo prefeito e o governador de São Paulo. As
explicações de parte da intelectualidade governista sobre os movimentos foram
exatamente as mesmas que eram difundidas na mídia, a qual era acusada por
aquela de estar instigando um golpe de direita. Governo e grande mídia
disseram, de forma uníssona, que os movimentos traziam uma pauta “difusa”,
incompreensível.
Os teóricos governistas e da direita disseram a
mesma coisa, querendo dominar o movimento, mas numa perspectiva conservadora do
modelo de sociedade que aí está, destacando, unicamente, alguns pequenos
problemas, numa perspectiva pontual.
Assim, enquanto o mundo tem se permitido um debate
aberto sobre o capitalismo, visando sua superação ou, ao menos, sua remodelação
completa, para dar um sentido renovado à condição humana, a mediocridade da
partidarização despolitizada, impulsionada pelo terrorismo do medo, aqui esse
debate foi negado, sendo que, de certo modo, foi aquém da energia que estava
nas ruas. Embora houvesse, certamente, muita força retrógrada atuando, a
maioria das reivindicações tinha uma conotação social.
Mas, o que se difundiu, estrategicamente, foi uma
visão de que não era o povo que estava nas ruas e quando as manifestações
atingiram a periferia e esta não atendeu ao chamado midiático de que fosse
“limpinha”, pacífica, novamente impôs-se uma análise conservadora, que
interessou de parte a parte. A primeira reação foi negar caráter político ao
fato, tratando-o como mera obra de vândalos, bandidos e criminosos (sendo
forçoso reconhecer que propósitos meramente criminosos estavam infiltrados em
parte desses manifestantes, mas isso também se deu em todas manifestações). Depois,
de forma mais elaborada, se disse que a reação nas periferias foi um efeito da
política inclusiva do PT, que permitiu a essas pessoas o contato com bens de
consumo primários e elas, agora, queriam mais. Mais do quê? Mais consumo. Mais
do capitalismo! Salvavam-se, assim, o governo, dito de esquerda, e a direita,
pois, ao mesmo tempo vangloriavam as ações do governo e faziam uma apologia do
capitalismo. Não se disse que a ação violenta nas periferias era uma reação na
mesma proporção da violência que essas pessoas sofreram ao longo de décadas, no
que se refere à falência dos serviços públicos, exatamente, com saúde,
educação, moradia e transporte, sem falar da violência policial, da percepção
da injustiça social e do conhecimento da impunidade com relação aos denominados
crimes do colarinho branco.
No discurso da Presidente Dilma, a tentativa de
equilíbrio, voltada à conciliação dos interesses conservadores, restou muito
clara. No que tange às manifestações pacíficas, com conteúdo “difuso”,
propôs-se instaurar mecanismos de diálogo para soluções futuras (sabe-se lá
para quando), ouvindo-se todos os setores da sociedade. Com relação à reação
vinda da periferia, o tema foi tratado apenas como “quebra-quebra”, que deve
merecer a ação enérgica de repressão das forças do Estado.
O que acontecerá agora que o Movimento Passe Livre
está chamando novas manifestações, mas desta feita na periferia? Parece-me que
o Movimento vai se reencontrar com sua origem e os discursos golpistas contra a
mobilização terão que buscar outra lógica ou terão, enfim, que reconhecer que
há no Brasil uma força efetiva à esquerda, bem além do parâmetro burocratizado,
permitindo um real debate por efetivas mudanças.
Por enquanto o legado que o terrorismo do medo
deixa é o de que devemos ter medo da democracia, medo de buscar mudanças
concretas, medo da política, medo de fazer manifestações, a não ser que sejam
com poucas pessoas, conhecidas e com carteirinha do partido. Acho, ainda, que o
terrorismo do medo foi provocado por desconfiança com relação à inteligência, o
senso crítico, a consciência social, o espírito de solidariedade e a capacidade
da juventude de assimilar informações e de realizar correlações,
abandonando-se, inclusive, o desafio de conquistar os corações e mentes desses
jovens. Essa desconfiança, ademais, se estendeu à população brasileira em
geral. A classe trabalhadora, aliás, há muito vem sendo vítima dessa tática do
medo, pois foi convencida de que não pode radicalizar suas pautas, para não
gerar o risco de enfrentamento do poder econômico com o governo que, afinal,
pertence aos trabalhadores, como se diz, provocando com isso até o acolhimento
de pautas de redução de direitos.
Mas, mesmo reconhecendo a complexidade em que se
transformou o movimento, não se pode, simplesmente, querer calar as ruas e
menos ainda diminuir a importância de seu grito, que, ademais, continuará
ecoando queiramos, ou não, dessa forma ou de outra, agora ou depois, pois a
sensação da cidadania experimentada foi um caminho sem volta. Essa vitória do movimento
em torno da consciência da força da mobilização não será perdida, por mais que
não se queira destacá-la.
É hora, ademais, de produzirmos lógicas racionais
que vislumbrem a complexidade do mundo e respeitem a nova inteligência humana.
Não é possível que o Brasil continue como está, e
mesmo não se pode acatar a irracionalidade de afirmar que tudo é culpa do PT e
que o PSDB tem a solução. Mas, também não se pode ter o medo de que as mazelas
sejam expressas, pois só assim, exercendo com plenitude a democracia é que se
pode produzir alguma racionalidade para a superação, por meio das instituições
democráticas, da realidade presente, que tem raiz em passado longínquo, vale
lembrar. A leitura marxista da história exige, ademais, a produção do conhecimento
científico, a busca da verdade, superando as versões falseadas dos fatos,
postas para atender interesses não revelados, de qualquer natureza, sendo que
uma forma básica para se identificar a cientificidade do debate é a
demonstração de coerência e correspondência.
A política dentro dos partidos é relevante, mas não
se faz política apenas dentro dos partidos. A política se faz, também, por
reações espontâneas nas ruas, que, posteriormente, vão se articulando. O
próprio PT surgiu assim. Ou alguém vai dizer que as mobilizações dos sindicatos
na década de 70, lideradas pelo ex-Presidente Lula, não foram políticas porque
não tinham partido? Além disso, a política não pode ser alheia à ciência e
esta, para exercer o seu papel, não pode ser atrelada aos limites de interesses
eleitorais, ditados pelo medo dos dividendos que uma verdade possa conferir ao
adversário político.
É momento, pois, de superar a ignorância,
alimentada pelo medo, e as formas fingidas de se posicionar. Penso que ainda
veremos grandes mudanças no mundo, que serão necessárias e inevitáveis diante
do estágio de estagnação do modelo capitalista de produção, mas não considero
que um modelo socialista possa ser imposto, ditatorialmente, às pessoas, com
supressão da liberdade e da lógica democrática e mais ainda a partir de uma
construção ideológica que despreze a realidade. As experiências históricas
neste sentido foram fracassadas e, ademais, não se pode pensar uma sociedade
socialista sem o conjunto das pessoas e menos ainda com pessoas impregnadas
pela lógica capitalista, lembrando sempre que o capitalismo é um modo de ser da
sociedade, não apenas um modelo de produção.
Além disso, o que está em jogo não é o dividendo
eleitoral ou acadêmico que uma ou outra ideia possa ter para esta ou aquela pessoa
ou algum partido político. O que se discute é, na essência, a condição humana e
quais são os arranjos sociais que possam favorecer à valorização de um ser
humano menos egoísta, não consumista, mais solidário, mais culto, mais humano,
enfim, com permissivo real à efetivação dos preceitos da liberdade e da
igualdade.
A juventude que foi às ruas, ainda que boa parte
dela tenha sido impulsionada por um apelo apartidário e despolitizado, está na
base material dessas discussões e tem total condição de compreender as questões
acima tratadas e, de forma surpreendente para muitos, possui propostas que vão
muito além daquelas a que tem chegado a esquerda burocratizada. Há que se ouvir
a juventude, sempre. Dizem que um problema de a esquerda de não se integrar com
coragem ao movimento das ruas é o de que esses jovens tendam aos quadros do
raciocínio reacionário e retrógrado. Acredito que o maior risco é o da
percepção por parte desses jovens da inconsistência teórica e prática de alguns
dos considerados partidos de esquerda, abrindo-se o espaço para o novo, e não o
de que se disponham a lutar por valores conservadores, que desprezam, no
mínimo, a crítica ao neoliberalismo, pois estão sendo assolados por seus
efeitos.
Não é possível saber, para onde estamos caminhando,
mas o mundo não está parado e já se moveu. O Brasil não será mais o mesmo. As
mobilizações sociais na luta por serviços públicos adquiriram em curtíssimo
tempo, tão curto que pode ser apontado como um corte revolucionário, o senso
comum, ainda que ditado por uma mídia comprometida com propósito político
diverso, de que se trata de manifestações políticas legítimas, superando-se o
tradicional e reacionário paradigma do direito de ir e vir. Esta revolução foi
uma vitória incomensurável para os movimentos sociais e para a classe
trabalhadora em geral.
Carrego o otimismo de que estamos dando um passo
decisivo adiante. Ao menos por enquanto, é possível professar que há um reclamo
geral para a construção de um mundo no qual se possa dizer, com fundamento teórico,
o que se pensa, com respeito às posições contrárias, com exigência apenas do
apelo à racionalidade e o requisito de que a ideia defendida sirva ao conjunto
da humanidade.
Não se deve deixar-se derrotar pelo terrorismo do
medo, sendo, ademais, relevante exaltar as vitórias já conquistadas pelas
manifestações, atribuindo os méritos a todos que delas participaram e não a uma
elite política e intelectual, pois do contrário restará a sensação de que a
luta nas ruas, pelos riscos que gera, não vale a pena, amordaçando e
burocratizando a ação política, recriminando os valiosos integrantes do MPL e
propugnando que a política só pode ser feita em campos limitados, sob o
controle dos ajustes conciliados, com o pretexto de se preservar a
governabilidade. Lembre-se que "Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado" é
uma concepção fascista, uma forma indireta de negar a política dos movimentos
sociais espontâneos e a relevância dos partidos. E vale avaliar em que medida a
vinculação dos sindicatos à base aliada do governo nos últimos anos provocou
desmobilização e perda da capacidade de organização da classe trabalhadora que,
inclusive, na visão do terrorismo do medo, estaria levando um banho de um
“bando de jovens despolitizados”, que se organizaram, sem qualquer teorização,
a partir de um único chamado na rede social – o que não me parece ter ocorrido
desse modo tão simplista, como demonstrado.
Pessoalmente, não quero conviver, silenciosamente,
com o engodo, em uma sociedade que se diz social-democrata, mas que preserva
interesses econômicos de grande conglomerados econômicos, que enuncia um enorme
quadro de direitos sociais e não os aplica, que institui Comissões da Verdade,
mas que não quer, de fato, que a verdade seja revelada, que cria uma Comissão
de Direitos Humanos e a faz presidir por uma pessoa que não tem noção do que
sejam os Direitos Humanos e que se apresenta, na realidade, com profundas
injustiças sociais.
Não sei qual é a verdade. Tenho mais dúvidas do que
respostas. Mas, não podemos ter medo de buscar a verdade e as manifestações nas
ruas, com toda sua complexidade, servem, sobretudo, para nos ajudar nesta
busca. A população está redescobrindo o espaço público e este é um ato
essencial até mesmo para redescobrir a política e o convívio humano, que, nas
passeatas, retirando os atos mais exaltados de alguns, chega a emocionar.
Cumpre às instituições, sobretudo aos partidos,
compreenderem o alcance das mobilizações e estabelecerem diretrizes concretas
para efetivarem, com urgência, seriedade e verdade, as reivindicações levadas
às ruas, que não são despropositadas, vez que estão, a maior parte delas,
consagradas na Constituição de 1988, que foi, vale lembrar, o pacto social já
realizado – e até hoje não cumprido, sobretudo no aspecto dos direitos sociais
– para superar o momento de crise instaurado no início da década de 80, quando
a democracia começava a florir e as pessoas, da mesma forma como agora,
cansadas das mentiras de um governo que prometia “tudo pelo social”, mas que
nada fazia de concreto neste sentido, foram às ruas em passeatas, chegando
mesmo a promover alguns saques.
Devemos aprender com a história e não podemos ter
medo da democracia. Não devemos ter medo das contrariedades manifestadas, que
constituem, ademais, a matéria-prima da produção da inteligência. Quando alguém
vai às ruas com placas de reivindicações, às vezes contraditórias e confusas,
não está participando de um golpe. No ano passado vários estudantes da USP que
ocuparam as ruas de São Paulo com os lemas “Fora PM”, “Fora Rodas”, “Fora
Alckmin”, queriam que os preceitos democráticos fossem respeitados. Estas são
formas de expressão naturais do panfleto das ruas, que traduzem um sentimento,
que devem ser assimiladas pela democracia e avaliadas intelectual e culturalmente,
seguido da reflexão sobre as razões da insatisfação. O grito tinha, em si, a
razão de ser contra os resquícios da ditadura que ainda regem aquela entidade,
gerando falência dos mecanismos de diálogo e uma atitude intolerante com
relação às contestações, atingindo, sobretudo, a ação sindical, intolerância
esta que foi reforçada com o apelo à violência da repressão policial, que é
mais grave ainda em se tratando de um ambiente acadêmico propício à formação e
à difusão de ideias.
Há de se perceber, por oportuno, o grande avanço do
momento presente, pois quando a repressão na USP ocorreu houve uma rejeição
generalizada tanto por esta mesma parcela da população que está nas ruas quanto
por aqueles que hoje acusam a existência de um golpe articulado. E, queiramos
ou não, o momento presente deve trazer os legados de que as manifestações
políticas não serão mais reprimidas com violência policial e de que o ambiente
escolar não é lugar para atuação articulada e ostensiva da Polícia Militar.
O que se verifica concretamente das manifestações
presentes, ademais, é que não há uma contrariedade tão grande assim entre a
maioria das reivindicações. Por mais que se tente alimentar o medo em torno do
reacionarismo ou golpismo de parte dos manifestantes ou que possa partir da
leitura que se faça do movimento, a quase totalidade das reivindicações
refere-se mesmo a direitos sociais, do que não se desvinculam, de certo modo,
também as pretensões que giram em torno da corrupção e da moralidade
administrativa, pois o furto do dinheiro público e o seu desvio para atender
interesses privados, somados à sonegação, em última análise, são o que
dificulta a promoção dos direitos sociais: saúde, educação, transporte e
moradia, e enfraquece o Estado, na qualidade de garantidor da efetividade dos
direitos trabalhistas e previdenciários.
Como já disse, é impossível prever o alcance das
manifestações e não se pode negar a tentativa de desvirtuá-las para outras
pautas, mas que ainda assim são importantes para o Brasil se conhecer. No
mínimo, não se pode perder o momento para conduzir o governo a uma pauta
verdadeiramente social, pois este é o menor alcance da maior parte das
reivindicações que está nas ruas. Mas, deve-se fazê-lo com rapidez porque estes
jovens insatisfeitos representam a sociedade do “click”, da mensagem “on line”,
e não querem mais a lógica antiga da formação de comissões que conduzem a lugar
nenhum. Seria, ademais, um efeito muito ruim abdicar do papel de auxiliar na
conscientização dessa energia política e social revelada, em forma de explosão,
por essa juventude, que está contagiando toda a sociedade, uma sociedade que ao
se revelar, da forma como tem feito, contra a corrupção e em favor dos direitos
sociais, parece estar disposta, enfim, também, a rever seus maiores problemas
que são a desigualdade social, o racismo, o machismo, o preconceito, a
segregação, a intolerância e a rejeição aos movimentos sociais e às
mobilizações dos trabalhadores. Ao menos essa sociedade precisa ser desafiada a
enfrentar esses problemas. Estão pedindo providências do governo, então é o
caso de verificar o quanto todos estão dispostos a contribuir para que se
efetivem as soluções.
No que me concerne, até porque devo isso a meus
alunos, como forma de demonstrar coerência, concluo dizendo que o terrorismo do
medo do mal maior, ou a lógica da acomodação ao mal menor, não vai me obstruir
a mente, deixando claro que não tenho medo da direita que se manifesta. Não
tenho medo mais da mídia que tenta manipular, pois diante do poder de
informação da internet a mentira sempre se revela. Tenho medo da direita que
não se apresenta, assim como tenho medo da esquerda que se omite ou que se diz
ser o que de fato não é. Tenho medo da ignorância, traduzida pela negação das
investigações científicas. Não tenho medo do grito. Tenho medo do silêncio,
pois é nele que se operam as tratativas, as negociatas e os conchavos. E
devemos todos ter medo mesmo é do silêncio que se tenta impor a quem pretende e
tem alguma coisa a falar!
São Paulo, 23 de junho de 2013.
(*) Professor
livre-docente do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da
Faculdade de Direito da USP.
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